Se há uma via régia para compreender o sentido da vida em alguma cultura, essa é a da sua construção de um sentido para a morte. O desaparecimento final de cada pessoa humana é um dos desafios cruciais com que se tem de haver o espírito humano, empenhado em dotar de significado toda matéria significante de sua experiência do mundo. Rachel Menezes dedicou-se a compreender como se organiza um dos segmentos mais intrigantes da organização contemporânea da morte ocidental moderna: os cuidados paliativos hospitalares a pacientes em situação limite. Seu treinamento prévio como médica e como psicoterapeuta e a competência adquirida como antropóloga, que provou cabalmente nessa tese de doutoramento, permitem conjugadas uma percepção agudíssima dos desafios, fórmulas e estratégias com que alguns segmentos da Biomedicina enfrentam as contradições estruturais da ideologia moderna da pessoa. Comprometidos fundamentalmente com a extensão e a qualidade da vida física, corporal, humana, não podem esses saberes esquecer que a experiência hospitalar impede e violenta a satisfação sensorial, afetiva e cognitiva intrínseca a nossa representação de uma boa vida . Introjetam assim esses segmentos parte das críticas à desumanização e hiperespecialização da medicina e avançam no sentido de produzir uma boa morte , ela própria controlada pelo onisciente e onipresente olhar médico. Isso não se faz sem uma renúncia à ambição universalista de controle absoluto dos processos vitais. Esse reconhecimento de um insuperável limite à razão está certamente relacionado com o clima de intensa religiosidade que cerca os fenômenos aqui descritos mesmo que não explicitamente confessionais. A presença de um sentimento religioso nesse universo confirma termos em mãos um nódulo revelador dos planos mais íntimos de nossa cosmologia: pessoa, dor, natureza, morte, prazer, responsabilidade, imortalidade, reverência, paz, perdão, resgate, alegria. Vida, enfim, de que nos fala a boa morte . Luiz Fernando Dias Duarte, Museu Nacional / UFRJ