A Democracia Reage

Liszt Vieira: “Democracia não está mais resistindo. Ela está reagindo”

 

Debate de alto nível entre amigos marca lançamento de “A Democracia Reage: O Brasil de 2020 a 2022” (Garamond, 2022) na Livraria da Travessa, no Rio, no último dia 14.

Por Tatiana Carlotti

 

Quem não conseguiu comparecer ao lançamento do livro A Democracia Reage: O Brasil de 2020 a 2022 (Garamond, 2022) do professor (PUC-Rio) e sociólogo Liszt Vieira, pioneiro da luta ambiental no Brasil, pode acompanhar no Canal do autor no YouTube o bate-papo de altíssimo nível político, e também afetivo, ocorrido no último dia 14, na Livraria da Travessa, no Rio.

Para debater a democracia e como ela vem reagindo às investidas do fascismo em curso, Liszt convidou três amigos de longa data: a atriz Lucélia Santos, candidata a deputada federal pelo PSB nas eleições deste ano; o economista Ladislau Dowbor (PUC-SP); e o deputado estadual Carlos Minc (PSB), ex-ministro do Meio Ambiente de Lula, entre 2008 e 2010.

Minc, aliás, tocou a todos ao recordar que 52 anos atrás, naquele exato dia, 14 de junho de 1970, Liszt,  Dowbor e ele saíam da prisão para o exílio na Argélia. Eles estavam entre os 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado dias antes no Rio, numa ação conjunta da Vanguarda Popular Revolucionária (VRP) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).

Na foto acima, no Galeão, momentos antes do embarque para Argélia. Abaixo, o grupo em segurança em Ben Aknoun, comuna em Argel, onde ficaram hospedados.
Treze anos depois, Liszt se elegeria deputado estadual pelo PT, tornando-se “o primeiro deputado verde do Brasil. Depois de muitos anos presos, exilados, um de nós ia para o Parlamento”, conta Minc. Em meados dos anos 1980, seria a vez da atriz Lucélia Santos se integrar à luta ambiental, participando da fundação do Partido Verde, o PV, ao lado de Liszt, Minc, Alfredo Sirkis, Herbert Daniel, Fernando Gabeira entre outros.

Em sua fala, Lucélia contou essa experiência e como abraçou a luta dos povos da floresta pela preservação da Amazônia após conhecer Chico Mendes, em 1988. “Eu cheguei em Xapuri (AC) no meio do grave conflito entre o latifúndio local e Chico Mendes – o mesmo que se vê agora –, em 1º. de maio de 1988 (…) No dia 22 de dezembro, Chico seria cruelmente assassinado na sua casa, por tiros de escopeta, por um pistoleiro de plantão”.

 

Essa é a História do Brasil,
Essa é a História da Amazônia,
Essa é a História dos povos da Floresta.

 

Ainda sob o impacto do desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista e ex-servidor da Funai, Bruno Pereira, cujas mortes seriam confirmadas somente na sexta (17), Lucélia foi categórica: “essa é a História do Brasil, essa é a história da Amazônia, essa é a história dos povos da floresta”.

Uma história que ela vem trazendo aos palcos com a peça Vozes da Floresta – Chico Mendes Vive, que conta o protagonismo das mulheres seringueiras na Amazônia, trazendo registros inéditos do líder seringueiro, guardados pela atriz em fitas k-7. Em cartaz até o começo de junho, a peça voltará em outubro, afinal, nesse meio tempo, ela irá se dedicar à campanha para deputada federal neste ano.

Uma candidatura, entre outras frentes, que se coloca à serviço dos direitos humanos e da reforma agrária na Amazônia. Em sua avaliação, a paz só virá com o reconhecimento dos territórios indígenas, por parte da União, como prega a Constituição de 88. “Enquanto não forem demarcadas as terras desses povos não haverá paz, nem justiça social e continuarão acontecendo assassinatos cruéis”, afirma.

 

“O que aquele povo passa, o Brasil não conhece, porque as grandes mídias conservadoras não explicam, não dão transparência e visibilidade às questões graves que acontecem ali”. Daí a importância da imprensa alternativa, “comprometida com a verdade dos fatos, com a justiça e com o jornalismo em si” na cobertura dos conflitos na Amazônia que “são imensos, inúmeros e não param. É todo dia”, complementa.

 

Ela também frisou que a defesa da Amazônia não é uma questão simplesmente local, mas de interesse nacional. “Quando falo da Floresta, estou falando de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Brasília, de Porto Alegre, de todos os centros urbanos. A Floresta em pé, viva, fecunda, extraordinária é a garantia da nossa vida, da nossa saúde, da nossa subsistência e descendência”.
“Conto com o novo governo – e espero que seja Lula e no primeiro turno – para enfrentar a questão da Amazônia de cabeça muito erguida, com vontade política efetiva de combater os garimpeiros, os invasores, os exploradores de madeira, os grileiros de terra, os vendedores, o narcotráfico, os traficantes”, conclui.

 

Sabemos o que deve ser feito, temos recursos, temos tecnologia

Na sequência, o economista Ladislau Dowbor, responsável pelo prefácio de A Democracia Reage, destacou a pertinência do livro de Liszt, uma “retrospectiva que constrói sentidos” e traz a “temperatura da desgraça que foi esse governo”.
Partindo da premissa de que “o nosso problema não é econômico, mas político”, Dowbor explicitou as contas dessa “zona generalizada” no Brasil e no mundo:

Se pegarmos o PIB mundial (90 trilhões de dólares) e dividirmos pela população mundial, teremos o equivalente a 26 mil por mês, por família de quatro pessoas. E se pegarmos o PIB do Brasil (8.7 trilhões de reais) e dividirmos pela população, teremos o equivalente a 13 mil reais por mês, por família de quatro pessoas. “A humanidade durante boa parte do tempo não tinha recursos para sair da miséria. Hoje, nós estamos nadando em recursos”.
Apesar disso, 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, e 125 milhões estão em insegurança alimentar. Entre as 33 milhões de pessoas, destaca o economista, 20% são crianças. Sim, existem 6 milhões de crianças passando fome agora no Brasil. O mesmo país que produziu, na sua última safra, 3,7 quilos de grão por dia e por pessoa. “Se dividir pela população, só de arroz, o que a gente produz, dava para entupir a barriga de todo mundo. Agora, fizeram a Lei Kandir e você pode exportar alimento e não pagar imposto”, lamentou.

 

Ele também comentou a fragilização dos sindicatos e dos movimentos sociais pelos sucessivos governos, salientando a impotência institucional que se reflete no fato de todas as nossas esperanças estarem concentradas na figura de uma só pessoa, o ex-presidente Lula. “Isso mostra a fragilidade da estruturação democrática e do sistema de organização social que vivemos”.
Em sua avaliação, “os dilemas que enfrentamos são de mudança civilizatória, de mudança de sistema”, afinal, “nós sabemos o que deve ser feito, temos os recursos, temos as tecnologias. Estamos nessa busca”.

 

Concorda?
Concordo.
Mas, não concorda assim tão fácil não. Diz por que você concorda.

 

O diálogo acima, trazido pelo deputado Carlos Minc (PSB) sobre o amigo e autor do livro, sintetiza a permanente problematização e a fuga das saídas simplificadoras, marcas da produção intelectual e da ação política de Liszt.

Lembrando o fato de Liszt “nunca ter deixado de ser de esquerda, nem ´vacilado´ em suas ideias sobre justiça social e socialismo, mantendo-se fiel a toda uma trajetória de vida”, Minc discutiu a importância da postura crítica do amigo, nem sempre a mais cômoda. Afinal, “para defender um governo de esquerda, você precisa ter argumento”, o que é impossível quando a repetição dá lugar à crítica.

 

Crítica presente na abordagem dos mais variados temas discorridos na obra, inclusive, questões delicadas da conjuntura nacional e internacional, ou a própria avaliação dos erros e acertos dos governos.

 

Ministro do Meio Ambiente (2008-2010) de Lula, Minc esteve à frente da redução pela metade do desmatamento no país; da criação do Fundo do Clima e Fundo da Amazônia; da adoção das metas de redução das emissões pelo Brasil, o primeiro entre os emergentes a fazê-lo. Apesar desses e tantos outros feitos, a pergunta se impõe: “será que fizemos todo o necessário? Se tivesse feito tudo certo, Bolsonaro não estava aí. O Liszt acha isso também”, pontua.

 

Quanto aos temas espinhosos, enfrentados e fundamentados no livro, Minc destacou a política das alianças neste ano eleitoral. E foi categórico: “quando há uma ameaça fascista, totalitária, concreta e iminente, a tática certa é isolar e derrotar o insano ou o tirano. A política de aliança ampla é a tática certa neste momento”. Em sua avaliação, “Lula está fazendo o certo quando busca o Centro. Você não pode vacilar”, sobretudo, diante de um governo que “está massacrando a universidade, a cultura e entregando a Amazônia para as narco-milicias de todo o mundo”.

Ele também destacou o quanto A Democracia Reage é “um livro gostoso de ler”, reunindo crônicas analíticas independentes, mas reunidas “pelo olhar de quem conta com décadas de militância política, de leitura, de atuação em legislar e em gerir”, aprofundando questões “sem preconceito, com clareza e integridade. Isso faz muita falta”, aponta.

 

Golpe?

Como era esperado, durante o debate com a plateia, veio à tona a questão de um possível golpe da extrema-direita durante as eleições. Segundo Liszt “uma coisa é a possibilidade de o golpe dar certo, outra coisa é ele tentar ou não. Acho que não há possibilidade de o golpe dar certo, mas ele vai tentar, com a PM ou os milicianos tumultuando as seções eleitorais. Não vai perder e dar parabéns ao vencedor. Não fará isso”.

“O mais importante é Lula vencer no primeiro turno. Como nele são votados também os governadores e os parlamentares, há muita gente interessada no primeiro turno. Agora, no segundo turno é Bolsonaro e Lula, portanto, a possibilidade de um tumulto é bem maior”.  Daí a necessidade de esforços reunidos para que Lula vença no 1º turno, afinal, “se isso não elimina, pelo menos reduz substancialmente a possibilidade de um golpe, não no sentido de tanques na rua, mas de tumulto, o que pode prejudicar a apuração eleitoral”, analisa.
Opinião corroborada por Minc, Dowbor e Lucélia em uma discussão acalorada com a plateia que merece ser acompanhada no Canal do YouTube do autor,clicando aqui.

 

Tatiana Carlotti é jornalista, mestre e doutora em Literatura Contemporânea.

 

Matéria publicada em 

Imigração judaica no Rio de Janeiro

Em entrevista sobre seu livro Poucos e Muitos: a comunidade judaica e seus desviantes na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920), Henrique Samet – historiador e professor da UFRJ – relata suas pesquisas em bibliotecas e arquivos para recolher o vastíssimo material inédito que compilou em sua extensa obra (620 páginas), que é talvez o maior estudo sobre a imigração judaica na cidade.

Nela, Samet, que aponta vestígios do fenômeno desde a época da Independência, descreve uma rica vida comunitária que criou instituições civis, culturais e religiosas, viveu conflitos e disputas internas, construiu cemitérios e templos, e até cultivou o teatro em língua ídiche.

Comenta também na entrevista um ponto relevante no livro: a presença, durante muitas décadas, de um forte contingente de prostitutas e cáftens entre os imigrantes judeus – motivo de polêmicas e questionamentos através da história. Para Samet, não existe algo assim como uma “unidade judaica” ou um “pensamento” judaico: como qualquer povo,a comunidade judaica é é plural, contraditória e tem desviantes. Como podemos ler em Poucos e muitos.

 

Uma história do petróleo

O blog Infopetro, um dos mais importantes fórum de debates sobre a indústria do petróleo, publicou esta resenha sobre o recente  livro do professor Luís Eduardo Duque Dutra (Garamond, 2019)

 

Capital Petróleo: A Saga da indústria entre guerras, crises e ciclos

 

Estabelecer a relação entre a mais que centenária indústria petrolífera e os altos e baixos da economia não é tarefa simples. Fazê-lo relembrando as contribuições das diferentes correntes do pensamento que, ao absorverem e refletirem a realidade em mutação, ampliam o escopo da análise sem cessar, foi a linha-mestra seguida em Capital Petróleo. A divisão e especialização do trabalho, a renda ricardiana, a luta pela apropriação do excedente, a instabilidade inerente dos oligopólios, o lucro supranormal do monopólio, a queda da taxa de lucro e a concentração, os custos de transação e sociais, a seleção adversa e o risco moral, a deficiência crônica da demanda, a inflação e a deflação… Noções de macro e microeconomia são destiladas ao longo do texto. O que permite aprofundar gradualmente a análise, ganhar uma compreensão mais abrangente, consistente e coerente, bem de acordo com a crescente complexidade do sistema de produção e a velocidade das transformações, acelerada depois que o petróleo substituiu o carvão.

A predisposição isenta de preconceito quanto à ideologia (que não cabe aqui discutir) não somente permite associar as diferentes perspectivas teóricas e positivas, mas também e principalmente, facilita o diálogo com a sociologia, a administração, o direito, a ciência política e as engenharias. A relação entre economia e petróleo além de ser multidimensional, tem extensão planetária, ultrapassa todas as fronteiras e alcança os confins da terra. É evidente que a reprodução de estruturas, padrões e comportamentos se sujeita à geografia, cultura e política local, mas, impressiona como, diante da diversidade (no tempo e espaço), identifica-se uma trajetória, em primeiro lugar, profundamente cíclica e, sem seguida, articulada com a reconstrução das relações entre centro e periferia.

O relato acompanha a expansão da atividade, de bacia em bacia sedimentar, detalha a sequência de províncias desenvolvidas desde o início e, assim, a partir do Meio-Oeste e das praias californianas chega-se à costa dourada mexicana, ao lago Maracaibo venezuelano, aos campos gigantes do Oriente-Médio, à epopeia off-shore no Golfo do México e Mar do Norte. Não se trata apenas de alargar as fronteiras, mas, vencer os sucessivos limites impostos pela geologia, geografia e engenharia e, assim, realizar o negócio e obter lucro. De acordo com o autor, não existe melhor exemplo de capital produtivo que tenha continuamente crescido contra ventos e marés e se posicionado entre os maiores do mundo. É interessante a atenção concedida à periferia, aonde a análise flagra as desequilibradas relações de poder e até onde o poder econômico vai para garantir o ganho. O termo guerra, logo no início do subtítulo da obra, deve ter esse sentido. Argentina, Bolívia, Paraguai, Venezuela, Colômbia, países do Norte da África, Nigéria e Angola estão entre aqueles estudados. A natureza extrativa ou, como o autor qualifica – predatória – da empreitada assume, muitas vezes, uma violência ímpar.

As três últimas partes do livro se concentram em eventos mais recentes e, em particular, na estratégia das empresas para preservarem o (até então) incontestável poder de mercado (consolidado muito antes da II Guerra Mundial). Descrito desde seus primeiros passos, o surgimento das estatais, com a nacionalização das reservas na periferia, mudou as regras do jogo e os fundamentos do mercado. A emergência das estatais chinesas, russas e árabes ilustra a profunda mudança depois da criação da OPEP. A crise financeira de 2008, sua persistência, a importância dos fundos soberanos (no enfrentamento da instabilidade cambial) e a fabulosa riqueza de alguns países são abordadas e configuram um cenário na política internacional bem diferente daquele esperado com o fim da Guerra Fria.

A sétima e última parte se inicia pela revisão da abertura dos mercados na América do Sul. A completa reestruturação da indústria local, a criação de órgãos de regulação e a presença de estatais ainda fortes são marcos que reposicionam os países da região no novo cenário petrolífero e no qual a Venezuela perdeu o protagonismo. Os três capítulos finais se atém à súbita queda de preços a partir de meados de 2014, à volatilidade dos preços, à instabilidade política e, a despeito de tudo isso, à recuperação das empresas no biênio 2017 e 2018. Demonstração clara de que ainda conservam poder suficiente para ampliar seu capital pelos próximos dez a vinte anos.

Contudo, não faltam ameaças e elas não se resumem à ganância do coletor de impostos, aos royalties cobrados pelos países hospedeiros ou a crônica instabilidade dos oligopólios e ditaduras. Elas estão relacionadas tanto à mudança de hábitos e costumes ao longo de gerações, quanto à mudança da estrutura econômica em resposta aos avanços da sociedade da informação e ao valor do intangível, do imaterial. As petroleiras não parecem preparadas para o desafio, em particular, no que diz respeito à questão climática. Elas terão de se reinventar (mais uma vez) para ficarem entre as maiores empresas do mundo.

Para o leitor após 430 páginas, talvez, o final seja frustrante, uma vez que o autor não se atreve a fazer projeções, ou prever o futuro. De forma quase enigmática, ele se refere ao mito de Prometeus: que alguma solução surja antes do desastre. Certo é que ela não contará com as petroleiras e questionará o sistema de produção atual, mas, o que fazer e como? Isso não foi nem mencionado. A esta crítica acrescento a observação de poucos (de fato, muito poucos) erros de diagramação e mesmo raros erros de português que passaram pela última revisão. Embora possam ser contados nos dedos, eles chamam a atenção em um português fluído e sempre claro. Um erro, porém, na nota de rodapé da página 217, é flagrante para qualquer iniciado na matéria.

Sem dúvida, sublinhada algumas vezes, a conotação marxista é um risco assumido, ela fica evidente na bibliografia, será sempre sujeita à crítica e afasta o leitor mais radical de imediato. Além disso, frente à ortodoxia e seus modelos, a quantidade de gráficos, tabelas e diagramas teriam muito melhor serventia ao serem analisados por outra perspectiva; mais quantitativa e normativa; menos qualitativa e histórica. As crises seriam conjunturais, resultado de fatores exógenos – como a intervenção do estado – e a concorrência se mostra sempre melhor que qualquer alternativa.
Definitivamente, não foi esta a escolha de Duque Dutra e, assim, em língua Portuguesa, seu livro ocupa um espaço antes vazio na literatura econômica.

Uma resenha | Blog Infopetro

Brumadinho, a “irresponsabilidade organizada”

Sob o título “Desastre Político”, a Folha de S. Paulo publicou (31/1/2019) este artigo do professor Henri Acselrad sobre a tragédia de Brumadinho e, de modo greral, sobre a responsabilidade das mineradoras em relação às populaçõs das regiões onde operam. Henri Acselrad é professor dxo IPPUR/UFRL e organizou recentemente, sobre o mesmo assunto, o livro POLÍTICAS TERRITORIAIS, EMPRESAS E COMUNIDADES: O NEOEXTRATIVISMO) E A GESTÃO EMPRESARIAL DO “SOCIAL” (Garamond).

Brumadinho

Mais uma vez lama, destruição, morte, desamparo e desolação.
Ante o desastre em Brumadinho – MG, algumas falas governamentais inicialmente divulgadas pela mídia evocam a necessidade de orações. Outras declaram perplexidade ante fatos há muito e por muitos prenunciados – desde associações de peritos criminais até inúmeros grupos de pesquisa de Universidade públicas. Outros, ainda, dizem nada poder fazer, por tratar-se, no caso, de evento de responsabilidade de uma empresa privada: “o governo federal não tem nada a ver com isso”.


Ora, o bem público é, por definição, reponsabilidade do Estado e o tal do “meio ambiente” é o mais claro exemplo de um bem estritamente público. Pois se não for o Estado a cuidar de nossos rios e matas, da qualidade do ar de nossas bacias aéreas e da qualidade das águas fornecidas por nossos sistemas de abastecimento, quem o fará? É para cuidar desses bens – dos quais depende fundamentalmente a vida da nossa população – que foram criadas leis e instituições ambientais. Estas instituições não foram feitas para arrecadar recursos, mas para fiscalizar e regular as atividades que podem causar danos à vida e à saúde do povo. E mais: como essas atividades são muitas – é o caso das barragens de resíduos de mineração, por exemplo – essas normas, leis e instituições, no interesse da população, precisam ser não só cuidadas, mas fortalecidas. Para cumprir seu papel, tais organismos da máquina pública requerem conhecimento e, sobretudo, autonomia de decisão ante os poderosíssimos interesses que buscam, sobre eles, exercer sua forte pressão; interesses que, no fundo, prefeririam talvez que estes órgãos nem existissem.


Desde sua criação nos anos 1980 até o presente, as agências ambientais do Estado brasileiro – em níveis estadual ou federal – vêm sendo objeto de uma gradual desmontagem. A opção de seguidos governos pela manutenção do modelo de desenvolvimento neoextrativista, que se instalou no país a partir dos anos 1990, foi acompanhada por esforços permanentes no sentido de flexibilizar a aplicação das leis e das normas inicialmente instituídas. Tratou-se, desde então, de facilitar a instalação no país, a qualquer custo, de empreendimentos intensivos em recursos naturais, isto é, aqueles que exploram para além dos limites os nossos bens comuns. Entre os fatores de competitividade das nossas exportações de commodities, sempre estiveram incluídos componentes que não são contabilizados nos preços, tais como a fertilidade de nossos solos, a pureza de nossas águas, entre outros. A “vantagem competitiva” para alguns, repousa, em grande parte, no repasse, sem pagamento, de partes do nosso patrimônio natural comum que viajam embutidas nas mercadorias exportadas. Mas, devemos somar a isto, também, o afrouxamento das condições de segurança de empreendimentos e a mudança do traçado de áreas de preservação, medidas que foram sendo adotadas com o fim de atrair investimentos internacionais que preferem instalar-se em países com fraco controle ambiental. Alguns economistas chamam a isto de “competitividade espúria” – aquela baseada na predação do patrimônio natural e social dos países exportadores (em lugar de uma competividade baseada em investimentos em educação e na criatividade de nossos cientistas). “Irresponsabilidade organizada” é, por sua vez, o nome que o sociólogo Ulrich Beck deu a essa submissão sistemática dos poderes públicos a interesses privados fortemente dependentes de tecnologias perigosas e intensivas em espaços e recursos naturais. Em nosso caso, espaços e recursos que alguns representantes dos grandes interesses do agronegócio e da mineração desejam subtrair de áreas protegidas – terras indígenas, quilombolas ou de unidades de conservação.


Outro fator de atratividade oferecido aos portadores de investimentos intensivos em energia e recursos naturais, como a mineração, é a não-proteção das populações que trabalham ou vivem em áreas expostas aos riscos associados às minas, fábricas, ou unidades de produção. No desastre da Samarco, em 2015, como no da Vale, agora, em Brumadinho, podemos verificar como a desproteção de rios e matas é, ao mesmo tempo, desproteção da população, notadamente de grupos sociais e étnico-raciais vulnerabilizados – vítimas preferenciais do descaso que provoca tais desastres. No caso da mina do córrego Feijão, a desproteção ambiental mostra-se fortemente associada à desproteção das condições ocupacionais dos trabalhadores, cuja fiscalização era da responsabilidade de instâncias do Ministério do Trabalho, hoje extinto.

É sabido que a desproteção da população aumentou à medida que investimentos em manutenção de equipamentos e instalações foram diminuindo e escolhas técnicas menos seguras foram sendo adotadas, de modo a compensar as quedas nos preços dos minérios. Vemos também que as economias empresariais com gastos de manutenção e a preferência por escolhas técnicas que aumentam a exposição da população a riscos de desastres são correntemente validadas pelos mecanismos do que os críticos chamam de “indústria do licenciamento”. A desconsideração do conteúdo de pareceres independentes e das sinalizações provenientes de lançadores de alerta atentos aos riscos, fazem parte deste processo de “organização da irresponsabilidade”. As atuais propostas de substituição do licenciamento público por autodeclarações empresariais são a linha de frente mais agressiva desse processo. O Projeto de Lei 3729/04, a chamada “Lei Geral do Licenciamento Ambiental”, veio sendo objeto de inúmeras inserções de bancadas empresariais interessadas em acelerar a recuperação dos investimentos em detrimento do respeito à saúde, à vida da população e à integridade do ambiente.
A questão do meio ambiente é por excelência de ordem política. Ela diz respeito à capacidade do Estado controlar as forças que pretendem impor usos privados indevidos aos espaços por todos compartilhados das águas, da atmosfera e dos sistemas vivos. A estas ações governamentais, adotadas com o fim de prevenir riscos decorrentes de grandes empreendimentos degradantes e poluentes, costumamos chamar de políticas públicas de meio ambiente. Nós a chamamos de públicas porque elas visam prevenir a privatização de fato de tais espaços, cuja integridade é vital a todos os cidadãos que os compartilham.   

A ruptura da barragem da mina Córrego do Feijão, da empresa Vale, foi um desastre político e não simplesmente técnico. Ele coloca em discussão toda a estrutura de regulação dos grandes empreendimentos. O que ruiu não foi somente a barragem, mas a fragilidade do processo de licenciamento. O que se revela, de forma calamitosa, é a indisposição do Estado controlar grandes empresas. Ao se colocar, direta ou indiretamente, os processos de decisão nas mãos das próprias empresas, regidas como elas são pela lógica da rentabilidade privada e da remuneração de seus acionistas, libera-se as corporações para que ela adotem economias temerárias de custos de manutenção ou opções técnicas que forçam, além da conta, a capacidade das barragens segurarem os rejeitos. A concepção que vigora nos espaços de poder é de, em nome de “desburocratizar” e “agilizar”, liberar os negócios privados para que usufruam dos bens ambientais públicos do modo que melhor lhes convenha. É possível identificar, ademais, a adoção de esforços destinados a neutralizar o debate público e reduzir a disposição da opinião pública a ouvir os alertas daqueles que, levantando questões do ponto de vista do interesse geral da população, procuram acompanhar os processos decisórios e legislativos, cobrando informações e precaução aos responsáveis pelos empreendimentos. Ora, desde o desastre da Samarco, fomos bombardeados por uma campanha publicitária milionária da empresa envolvida naquele e no presente desastre. A população é submetida a campanhas de marketing que só podem ter por fim reduzir a capacidade da sociedade discutir criticamente os problemas associados à cadeia da mineração. Mais perturbador é o tamanho de um tal investimento – destinado a manter o chamado “capital reputacional” ou a “imagem” da empresa – quando o comparamos ao abandono a que foram relegadas as vítimas do descaso empresarial e governamental que vivem ao longo do Rio Doce.


Passados alguns dias, ante a repercussão e o tamanho do sofrimento imposto às centenas de vítimas, governantes mencionam dimensões políticas e legais. Procura-se ressignificar a promessa de campanha de flexibilizar os processos de licenciamento – “flexibilizar quer dizer respeitar regras rígidas”, dizem. Em seu uso corrente, flexibilizar costuma designar o uso de expedientes que permitam não aplicar normas, alegando-se razões de ordem superior, em geral de ordem econômica, relativa ao desenvolvimento dos negócios. Quando há a pretensão de se aplicar regras rígidas, a regra principal é a de “não flexibilizar”. Rebaixar o nível de risco da barragem da mina córrego do Feijão é um exemplo claro da prática de flexibilização das normas ambientais. “Decisão abominável que beira a insanidade” – foi a expressão da representante da sociedade civil na reunião da Câmara Técnica de Atividades Minerárias do Conselho de Políticas Ambientais do estado de Minas Gerais em 11 de dezembro último quando sua posição, contrária à flexibilização/agilização excepcional do licenciamento, foi derrotada por 8 a 1.


Ao contrário do que se ouviu dizer, há, sim, muito o que fazer. Mas entende-se também que é grande o ceticismo quando um governo subordina suas políticas ambientais e de saúde ocupacional às prioridades do agronegócio e da mineração. Isso já veio acontecendo ao longo de governos passados, tendo apenas se agravado após o impeachment de 2016; mas nunca antes um discurso anti-ambientalista explicito foi adotado por agentes governamentais. Este último episódio dá fortes elementos de razão à tese de que práticas empresariais irresponsáveis, efetuadas com a complacência do Estado, serão tão mais frequentes e repetidas quanto as populações atingidas são de baixa renda, trabalhadoras e pertencentes a grupos étnico-raciais pouco representados na esfera decisória. O que nos cabe esperar é que, enquanto houver espaço para o debate democrático de ideias, uma discussão crítica do modelo de desenvolvimento neoextrativista e o respeito aos alertas dos defensores de direitos socioambientais nos permitam alcançar a punição das empresas responsáveis e uma justa e eficaz prevenção das práticas até aqui correntes  de condescendência do Estado para com a irresponsabilidade social corporativa. 

Ensino superior pasteurizado: aonde vamos?

Ensino superior pasteurizado: aonde vamos?Ensino superior pasteurizado: aonde vamos?

Ex-presidente do Conselho Nacional de Educação e autor de Educação superior no Brasil, obra de referência sobre a questão, o professor Edson Nunes aborda neste artigo os impasses da educação universitária no Brasil contemporâneo. O texto foi publicado no jornal O Globo em 22 de julho de 2017.

No início do século XXI o Brasil inventou, por lei, um setor econômico novo, o ensino superior com finalidade lucrativa. Mostrou vitalidade, robusta expansão e provê educação para milhões de estudantes. Um pouco antes, no final do século passado, o país inventou, por meio de Regime Jurídico Único, RJU, o ensino superior burocratizado, provido por funcionários públicos, com frequente tutela sindical.

Mercado e burocracia cumpriram papéis relevantes. Mas seu ciclo virtuoso esgotou-se.

Dominadas pela lógica do funcionalismo público, sindicalismo e decorrente corporativismo, as universidades governamentais assumiram formatos semelhantes, adotando regras homogêneas, uniformizando salários, pasteurizando-se. Dominadas pela lógica do mercado, surpreendentemente, as universidades particulares assumiram formatos semelhantes, adotando regras homogêneas, pasteurizando-se.

Tal resultado se escora em regras de avaliação e regulação desenhadas e administradas pela burocracia pública, por meio do MEC, seus institutos e secretarias, que entenderam ser “natural” o modelo baseado no RJU e na concepção burocrática e eventualmente sindical de ensino superior. E nele se inspiraram para criar um sistema de avaliação e regulação. Injetaram na operação do Sistema Federal de Ensino Superior, que abrange o setor governamental e o particular, padrões regulatórios que conduzem e incentivam a perpetuação da face atual do sistema de ensino superior.

A criatividade não é estimulada, senão até proibida. É um modelo de ensino superior controlado, em última instância, por corporações profissionais de portadores de diplomas de ensino superior. Protegidas por leis presenteadas pelo Congresso Nacional, em estreita cooperação com o MEC, baseadas em regra da LDB, garantem e demandam a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino superior de cada “profissão” regulamentada por lei. Cada corporação profissional, sob a tutela do MEC e da LDB, tem Diretrizes Curriculares Nacionais para chamar de suas.

Numa perversa consequência não antecipada, o mercado, o corporativismo e a burocracia, juntamente com o sindicalismo imperante, engessaram, e agora atrapalham, a formação de gerações futuras. As universidades brasileiras de hoje nada mais são que uma federação de escolas de preparação profissional, tuteladas por “profissões” do passado, destinadas a nichos profissionais que não mais fazem sentido e, ainda mais, deixarão de existir no futuro.

Provocou comoção e debate a reforma do Ensino Médio. Atenção nenhuma se dispensa, contudo, à indispensável reforma do Ensino Superior, muito mais complicada porque atinge diretamente o poder de corporações estabelecidas e sancionadas por leis, federações e conselhos nacionais de profissões que filiam milhões de integrantes.

Desde o governo militar, com a fracassada “reforma universitária” de 1968, que nada mais foi do que um conjunto de regras burocráticas para a organização das instituições, pouco ou nada se fala sobre os conteúdos do ensino superior e sua crucial relação com o futuro de gerações e gerações de brasileiros.

O conteúdo do ensino superior é matéria tão relevante quanto os conteúdos do ensino médio.

O MEC e a sociedade brasileira precisariam compreender que não há nada de “natural” naquilo que os jovens aprendem hoje nas universidades. Não passa de codificações primitivas de ditames corporativos advindos de grupos de interesse que tiveram sua “profissão legal” sancionada pelo Congresso. Em verdade, a sociedade até já entendeu isso e, num certo sentido, já reconhece uma informal “reforma universitária”: mais da metade dos egressos do ensino superior, na grande maioria das “profissões”, não trabalha em ocupações ligadas à cartilha profissional codificada que lhes foi oferecida.

Mas continuamos a perpetuar a existência de um passado que ainda governa os estudos das novas gerações, obrigando-as a gastar tempo com informações que não têm mais lógica e serventia no mundo real.

Tráfico e religião nas favelas

Diariamente, às 5h30min, o radinho de comunicação dos integrantes do tráfico nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio de Janeiro, começa a chiar. O chefe do tráfico entoa uma oração que busca se comunicar, a um só tempo, com o divino e com seus comandados, apelando por proteção e dando orientações à sua “equipe”. “[o chefe do tráfico] Orientava condutas, porque ele dizia para matar menos, falava para os líderes comunitários cuidarem das pessoas. Aquela oração era uma comunicação com o alto e o baixo”, explica Christina Vital Cunha, pesquisadora e autora do livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015).

A virada dos anos 1990 para os anos 2000 marcou uma mudança radical da sociabilidade nas favelas do Rio de Janeiro no que diz respeito à relação entre religiosidade e tráfico. O novo contexto passa a ter como marca social uma nova gramática, aquilo que a pesquisadora chama de “cultura pentecostal”. “[Esta cultura] existe nas localidades e se expressa dentro das lógicas do universo evangélico, a ver com a cosmovisão pentecostal do mundo como o lugar da guerra. É o mundo da guerra do bem contra o mal, da disputa das almas. Paralelamente, esse é o mundo do tráfico, da guerra e da vigia, é bíblico também, vigiar e orar. O vigiar vem antes do orar. O cotidiano dos traficantes é o de vigia constante”, descreve.

Em entrevista concedida por telefone a Ricardo Machado, do site do Instituto Humanitas Unisinos, a pesquisadora explica como a gramática da guerra, do deus de Davi, produz uma estética que vai impactar em toda economia local das favelas, do comércio às relações interacionais dos moradores.

Confira a entrevista completa em:

http://www.ihu.unisinos.br/564908-oracao-de-traficante-o-mundo-da-guerra-do-trafico-e-da-guerra-das-almas-entrevista-com-christina-vital-cunha

 

Christina Vital | Foto: Arquivo Pessoal

Christina Vital Cunha é professora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense – PPCULT e do Departamento de Sociologia da mesma universidade. É doutora em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ e mestra em Antropologia e Sociologia pelo IFCS/UFRJ. Integra a equipe de pesquisadores da Rede de Pesquisadores Luso-Brasileiros de Artes e Intervenções Urbanas, coordenada por Glória Diógenes (UFC) e Ricardo Campos (Universidade Nova de Lisboa) e o grupo Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia, coordenado por Emerson Giumbelli (PPGAS-UFRGS). É autora dos livros Religião e Conflito, Ed. Prismas, 2016, em parceria com Melvina Araújo; Oração de Traficante: uma etnografia, Ed. Garamond, 2015; Religião e Política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTs no Brasil, 2012, em parceria com Paulo Victor Leites Lopes. É colaboradora ad hoc do Instituto de Estudos da Religião desde 2002.

As cartas de João do Rio

globo_muito_dalma.jpg

A Garamond acaba de lançar uma obra que reúne as 66 cartas enviadas pelo carioca Paulo Barreto/João do Rio a seu amigo português João de Barros. Minuciosamente transcritas, anotadas e comentadas pelas professoras Claudia Poncioni e Virginia Camilotti, organizadoras do volume, as cartas nos permitem não só delinear um retrato multifacetado do missivista como reconstituir o contexto cultural efervescente do século XX.

Complementando dados e corrigindo erros de edições anteriores, o livro (veja aqui: http://goo.gl/5BBKPR) é uma referência sobre os mundos literário, jornalístico, dramatúrgico, artístico em geral, mesclados com temas políticos, históricos e sociais que emergem desses tempos da Primeira Guerra e da Primeira República.

No último dia 6 de fevereiro, O Globo publicou uma extensa resenha sobre a obra (leia a matéria completa em:  http://glo.bo/1Qk1xr). No texto, o jornalista Leonardo Cazes diz:

“Para além dos laços pessoais, a correspondência dos dois traça um painel da produção cultural e literária no Brasil e em Portugal nas primeiras décadas do século XX, assim como um projeto conjunto de aproximar os dois países.”

“O trabalho das duas professoras [organizadoras do livro] levou quatro anos. Todas as cartas eram manuscritas, com a caligrafia miúda e nervosa característica de João do Rio. O maior desafio, entretanto, não foi decifrá-las, mas identificar quando foram escritas, já que poucas estavam datadas. Para montar a cronologia das missivas, foi preciso recorrer a marcadores temporais, como notícias de jornal e nomes de personagens citados. Até o caso de duas pessoas com o mesmo nome, um português e outro brasileiro, foi encontrado. Um verdadeiro trabalho de detetive.”

Pesquisa retrata a família brasileira no período 1976-2012

A Revista Pesquisa FAPESP publicou uma excelente resenha, assinada por Rodrigo de Oliveira Andrade, sobre o livro Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero (Garamond), que foi publicado a partir da tese de doutorado de Nathalie Reis Itaboraí, vencedora do prêmio de melhor tese de 2016 no concurso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Leia abaixo:

 

 

 

As transformações do papel da mulher na sociedade brasileira durante o século XX, com conquistas importantes envolvendo o direito ao voto, divórcio, trabalho e à educação, são bastante conhecidas. O que agora começa a ficar evidente é que essas mudanças teriam estimulado um processo de emancipação feminina também na esfera familiar, com destaque para a conquista de autonomia financeira e a redução das taxas de fecundidade, que vêm caindo progressivamente desde os anos 1960. Nos últimos anos, vários pesquisadores se propuseram a analisar esse fenômeno. Um dos trabalhos mais recentes é o da socióloga Nathalie Reis Itaboraí, pesquisadora em estágio de pós-doutorado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).

Com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad-IBGE), ela analisou o processo de emancipação das mulheres nas famílias brasileiras entre 1976 e 2012 à luz de uma perspectiva de classe e gênero. O período é marcado por transformações na condição feminina, favorecidas por mudanças na estrutura produtiva, mais oportunidades de educação e trabalho e difusão de novos valores pelos meios de comunicação e pela segunda onda do feminismo, iniciada nos anos 1960 – a primeira se deu na segunda metade do século XIX. “Foi também nessa época que a desigualdade de gênero começou a ser mais debatida no Brasil, sobretudo após a declaração, pelas Nações Unidas, de 1975 como o Ano Internacional das Mulheres e o período de 1976-1985 como a Década da Mulher”, explica a pesquisadora.

Nathalie é autora do livro Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): Uma perspectiva de classe e gênero (Garamond), publicado a partir de sua tese de doutorado, vencedora do prêmio de melhor tese de 2016 no concurso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) de obras científicas e teses universitárias em ciências sociais. No estudo, ela procura ir além dos indicadores de gênero que medem as mudanças na condição feminina na esfera pública (participação no mercado de trabalho, representação política etc.), frequentemente usados para comparar os avanços no Brasil com outros países. Esses indicadores, segundo ela, não contemplam as diferenças entre grupos sociais na sociedade brasileira e o impacto da desigualdade de gênero na família e no trabalho doméstico (o cuidado da casa, dos filhos ou de familiares idosos, por exemplo).

Para analisar como se deram as transformações na experiência familiar das mulheres em diferentes classes sociais, Nathalie adotou oito tipos de estratos ocupacionais. Eles abarcaram desde trabalhadores rurais (classe 1), mais pobres, a profissionais com nível superior (classe 8), mais abastados. Ainda que as desigualdades entre mulheres de diferentes classes continuem grandes, as análises indicam que o comportamento familiar feminino, independentemente da classe social, mudou na mesma direção nos últimos 40 anos, com avanços significativos quanto à sua autonomia, o que envolve maior controle sobre o próprio corpo, capacidade de gerar renda própria e de controlar esses recursos.

Até o final da década de 1960, no Brasil, o modelo tradicional de família era marcado por enormes assimetrias entre homens e mulheres. Nos casais, o homem, em geral, era mais velho, mais escolarizado e tinha mais renda. As mulheres trabalhavam apenas enquanto solteiras, abandonando suas atividades após o casamento para se dedicar aos serviços domésticos e cuidar dos filhos. Isso começou a mudar a partir dos anos 1970 (ver entrevista com a demógrafa Elza Berquó na edição 262). Nathalie verificou que a condição das mulheres melhorou em relação a seus cônjuges nesse período. As diferenças de renda diminuíram nos casais, assim como as de idade e de escolaridade.

Também o arranjo tradicional de família, com o homem como único provedor e a mulher como dona de casa, deixou de ser predominante. Em 1976, o percentual de mulheres casadas de 15 a 54 anos que trabalhavam era de 25,4% na classe dos trabalhadores rurais (classe 1) e de 34,5% entre os profissionais com nível superior (classe 8). Em 2012, esse número subiu para 46,4% e 75,5%, respectivamente. “Ter renda própria ajudou a ampliar a autonomia econômica das mulheres, ainda que para as mais pobres isso signifique apenas reduzir certas privações”, explica a socióloga. Em 1976, o homem era o único provedor em 77% dos casais de trabalhadores rurais e em 63% dos casais de profissionais com nível superior. Em 2012, esse percentual caiu para 50,5% na classe 1 e para 24,1% na classe 8. “Homens e mulheres se tornaram mais parecidos quanto ao engajamento profissional, ainda que as mulheres enfrentem mais obstáculos no mercado de trabalho”, ela destaca.

Essas conclusões reforçam um fenômeno que há algum tempo vem sendo observado no Brasil. A quantidade de lares chefiados por mulheres aumentou 67% entre 2004 e 2014 no país, segundo dados do IBGE. A concentração de mulheres chefes de família tende a ser mais acentuada nas camadas mais pobres, já que a própria pobreza as conduz ao mercado de trabalho, verificou a socióloga Mary Alves Mendes, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI), em estudo apresentado em 2002 no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, em Ouro Preto, Minas Gerais.

Tendência semelhante foi identificada em 2006 pelo demógrafo Mario Marcos Sampaio, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é um dos coordenadores de uma pesquisa publicada na revista Bahia Análise & Dados que analisou o processo de emancipação feminina nas regiões metropolitanas brasileiras entre 1990 e 2000. No estudo, eles verificaram que a participação das mulheres na composição da renda familiar brasileira é crescente, no papel de cônjuge ou no de filha.

Essas mudanças estão relacionadas a um processo lento, mas contínuo, de ampliação das oportunidades de acesso à educação às mulheres, iniciada em 1879, com a promulgação da Reforma Leôncio de Carvalho, que permitiu às mulheres cursar o ensino superior. A partir dos anos 1970 essa ampliação passou a ser acompanhada de uma tendência de melhor desempenho escolar das mulheres em relação aos homens, sobretudo nas famílias mais pobres. Hoje, segundo dados publicados em 2014 pelo IBGE, 12,5% das mulheres com 25 anos ou mais completaram o ensino superior em 2010. A participação masculina no período foi de 9,9%. “Se existe uma estratégia nas classes baixas de escolher um ou mais filhos para seguir estudando, é provável que sejam as meninas, por terem, em média, um melhor desempenho escolar”, afirma Nathalie.

Os métodos de contracepção também tiveram um papel central no processo de emancipação feminina, à medida que as mudanças desencadeadas pela liberação sexual e o surgimento da pílula anticoncepcional, nos anos 1960, deram mais segurança às mulheres para que pudessem organizar a maternidade em função de suas ambições profissionais e outras prioridades. Como resultado, ao longo dos anos houve uma diminuição das taxas de fecundidade (estimativa do número médio de filhos que uma mulher teria até o fim de seu período reprodutivo) em mulheres de todas as classes sociais e de maneira ainda mais acentuada nas classes baixas. Em 1976, a taxa de fecundidade dos trabalhadores rurais (classe 1) era de 6,6 filhos por mulher. Em 2012, esse número caiu para 2,8. No mesmo período, a taxa de fecundidade entre profissionais com nível superior (classe 8) diminuiu de 2,5 para 1,2. Segundo dados do IBGE de 2015, a taxa de fecundidade no Brasil é de 1,72, abaixo do nível de reposição da população.

De acordo com a antropóloga Andrea Moraes Alves, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa tendência se consolidou nos anos 1990. A visão da contracepção como um direito da mulher e como parte da atenção à sua saúde foi fortalecida durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, promovida em 1994, no Cairo, Egito, e pela IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, China, em 1995. “Os movimentos feministas tiveram um papel central para o estabelecimento desse conceito”, destaca a pesquisadora, que recentemente analisou a trajetória do Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC), instituição privada que funcionou no Rio de Janeiro entre 1975 e 1992 oferecendo acesso à contracepção e à cirurgia de esterilização para mulheres.

As conclusões de Nathalie e Andrea são condizentes com outros estudos, coordenados pelas demógrafas Elza Berquó e Sandra Garcia, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Elas são responsáveis pela pesquisa “Reprodução após os 30 anos no estado de São Paulo”, publicada em 2014 na revista Novos Estudos, do Cebrap. As pesquisadoras identificaram uma tendência entre as mulheres de adiamento da maternidade para depois dos 30 anos. Em São Paulo, a taxa de fecundidade passou de 4,7 filhos por mulher, em 1960, para 1,7, em 2010, sugerindo a existência de uma tendência de adiamento, temporário ou até mesmo definitivo, da maternidade.

Já na pesquisa “Reprodução assistida no Brasil: Aspectos sociodemográficos e desafios para as políticas públicas”, coordenada por Sandra Garcia, verificou-se um aumento do uso de tecnologias de reprodução assistida no Brasil. “O adiamento da maternidade se dá de modo mais significativo entre mulheres de nível socioeconômico mais elevado, mas também é observado entre mulheres de classes menos favorecidas”, ela explica. Segundo Sandra, a procura por técnicas de reprodução assistida aumentou em função do adiamento da reprodução para após os 30 anos e também por causa dos novos arranjos familiares.

Apesar dos avanços da condição da mulher, muitos obstáculos ainda precisam ser superados. As que trabalham fora de casa ainda recebem 30% menos para ocupações similares exercidas pelos homens, são minoria nos cargos de chefia e direção e assumem as atividades do mercado de trabalho sem renunciar aos afazeres domésticos. Também as mulheres com filhos enfrentam dificuldades para voltar ao mercado de trabalho.

Outro problema: o tempo gasto pelas mulheres com serviços domésticos em todas as classes sociais tende a ser maior do que o gasto pelos homens. “Meninas de 10 a 14 anos gastam mais tempo com serviço doméstico do que meninos da mesma idade”, diz Nathalie. Esses dados estão alinhados com os divulgados em 2016 no relatórioHarnessing the power of data for girls, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que indica que garotas entre 5 e 14 anos despendem 40% mais tempo por dia em tarefas domésticas não-remuneradas que os garotos. Em geral, o trabalho das meninas é menos visível e subvalorizado.

Artigos científicos
GARCIA, S. & BELLAMY, M. Assisted Conception Services and Regulation within the brazilian context. JBRA Assisted Reproduction. v. 19, n. 4, p. 198-203. nov. 2015.
BERQUÓ, E. S. et al. Reprodução após os 30 anos no estado de São Paulo. Novos Estudos Cebrap. n. 100, p. 9-25. nov. 2014.

Livro
ITABORAÍ, N. R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): Uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2016, 480 p.

A medicina como negócio, a ética como consumo

“O que se quer é que se consuma o quanto mais”

Entrevista com Luiz Vianna Sobrinho, autor do livro Medicina Financeira: a ética estilhaçada

publicada no site Outras Palavras (https://outraspalavras.net/outrasaude/2018/02/19/medicina-financeira/)

Por Patricia Fachin, no IHU Online

A medicina exercida nas últimas décadas pode ser definida como “gestão contábil da saúde”. É a partir dessa ótica que o médico Luiz Vianna Sobrinho, autor do livro Medicina Financeira: a ética estilhaçada (Rio de Janeiro: Garamond, 2013), chama a atenção para a “mercantilização” da saúde no Brasil. “Médicos são acompanhados por seu desempenho pelas operadoras de planos de saúde, os hospitais idem e, assim, os pacientes também. Seus riscos, antes mesmo de surgir qualquer doença, são acompanhados e ‘tratados’. (…) Pacientes são negociados em carteiras, como ações. Patologias são precificadas como commodities. E a medicina baseada em evidência é que vem em busca de dar certificação a esse mercado”, denuncia o médico, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Vianna Sobrinho ressalta que, durante os governos Collor e Fernando Henrique, a saúde deixou de ser uma “atividade essencial do Estado” e foi entregue à iniciativa privada. “Ainda não houve um retorno dessa política em outro sentido. Logo, o que o Estado vem fazendo com o SUS é quase que o colocando como um apanágio para quem não consegue pertencer ao mercado de saúde”, lamenta.

O médico também comenta temas polêmicos que estiveram em pauta no último ano, como a luta pela Lei do Ato Médico e o Programa Mais Médicos. Para ele, a vinda de médicos estrangeiros para o Brasil tenta solucionar uma “crise aguda” na área da saúde. Trata-se de “uma grande vitrine em ano eleitoral, mas talvez se torne uma grande vidraça, como já começamos a perceber. Há inúmeros pontos frágeis, e o resultado a longo prazo me parece muito incerto”, pontua.

Luiz Vianna Sobrinho é médico cardiologista.

Confira a entrevista.

 

É possível traçar um perfil do exercício da medicina no Brasil?

Eu penso que sim, como uma caricatura. A medicina ‘tupiniquim’ guarda algumas semelhanças com outras questões nacionais, como a educação ou distribuição de renda. Há imensos contrastes, e essa talvez seja a sua marca. Acho que teríamos um perfil mais uniforme se fôssemos falar da medicina inglesa, francesa, portuguesa ou chilena. De uma forma geral, sabemos que a educação médica no Brasil tenta se espelhar na medicina norte-americana. A prática profissional tenta seguir os mesmos preceitos daquela prática liberal; o grupo da saúde pública bebe de outras fontes, do modelo inglês e francês, principalmente. Mas a variedade de práticas que vemos no nosso território é muito grande. Penso sempre na imagem do ‘Ornitorrinco’, do sociólogo Chico de Oliveira. Numa mesma cidade, como o Rio de Janeiro, por exemplo, circulamos entre mundos diferentes todo o tempo; a poucos quilômetros um do outro, às vezes na distância de algumas quadras. O que mais me espanta, no entanto, é que o médico também se metamorfoseia e muda sua relação com o paciente, enquanto ‘pula’ entre este ou aquele serviço, entre o público e o privado.

 

Por que as condições de saúde no Brasil são precárias? O que isso significa em termos de atendimento médico, tratamentos, atenção à saúde? Essa precarização da qual o senhor fala se estende a toda a medicina?

O tema saúde é muito amplo. É político, é sociológico. Eu fiz um corte nesse tema e busquei olhar para a medicina, dentro deste momento da nossa história. Assim, as condições de saúde são precárias na mesma proporção e regionalidade que as condições sociais totais também o são. Temos o melhor hospital da América Latina e locais que precisam do Programa Mais Médicos. Somos um dos líderes mundiais em rankings de desigualdades.

 

Quais as principais mudanças evidenciadas na atividade médica nos últimos anos e a que atribui tais transformações?

Aqui eu teria que fazer um resumo rápido de todo o meu livro. Então, com relação à atividade médica, eu diria que há duas ou três décadas a explosão da tecnologia era a grande mudança na área médica e também o que mais influenciava a relação entre o médico e o paciente. Nas últimas décadas, a explosão foi da informação e da sua assimilação pelo mundo da gestão, da burocracia, do controle financeiro pelo mercado da atividade médica. Esse é o tema do meu livro.

 

Em seu livro, utiliza o termo “desatenção cortês”. Por que essa parece ser uma das principais características dos médicos?

É uma expressão do sociólogo Erving Goffman, uma caracterização da ambiguidade do atendimento nos nossos tempos, em que se busca dar confiabilidade ao contato, mas, ao mesmo tempo, afastando-se de uma relação de maior intimidade. É a situação em que diríamos: “me atendeu de forma burocrática”. Os médicos que vendem seus serviços como um objeto de consumo a ‘clientes’ tendem a se comportar dessa forma. Diferentemente daqueles que permanecem com o entendimento de um paradoxo para o qual nos chama a atenção o filósofo Paul Ricoeur — de que embora a medicina tenha um preço e custos para a sociedade, a pessoa não é uma mercadoria e a medicina não pode ser um comércio.

 

O que senhor entende por medicina financeira? Que modelo de medicina existe em contraposição a essa?

É a medicina que estamos percebendo nas últimas décadas. Poderíamos falar do biopoder, como em Foucault e Agamben, mas essa questão não é novidade, vem de muito tempo. Atualmente, prefiro a expressão do Gaulejac, de “gestão contábil da saúde”. Hoje, é mais disso que se trata. Médicos são acompanhados por seu desempenho pelas operadoras de planos de saúde, os hospitais idem e, assim, os pacientes também. Seus riscos, antes mesmo de surgir qualquer doença, são acompanhados e “tratados”. A bioestatística é utilizada como um instrumento de avaliação e seleção de populações, seja para intervenção terapêutica, seja para contratação de seguros. Pacientes são negociados em carteiras, como ações. Patologias são precificadas como commodities. E a medicina baseada em evidência é que vem em busca de dar certificação a esse mercado.

Penso que exista ainda muita prática de uma medicina mais sábia, voltada ao indivíduo de cada atendimento.

 

Em que consiste o paradoxo no Complexo Econômico-Industrial da Saúde?

A saúde movimenta uma parcela considerável da economia mundial. Podemos pensar que na ponta final desse processo está um paciente que utiliza algum insumo prescrito ou indicado por um profissional da saúde, que pode ser um médico. Ora, essa grande indústria pode ser de medicamentos, de marca-passo, de prótese de quadril, de pinças cirúrgicas, de cateter urinário, de máquinas de tomografia. O que se quer é que se consuma o quanto mais. Os hospitais são um dos principais pontos de venda. Mas a ascensão do financiamento privado da saúde por meio dos planos e seguros trouxe um contraponto a esse consumo. O interesse aqui é na contenção do consumo, nas medidas de controle. E o mercado se equilibra, ou não, nessa disputa de consumo e controle. É notória a compra de ações da indústria farmacêutica americana pelos mesmos grupos financeiros que controlam os maiores seguros de saúde; tal concentração e onipresença é típica do capitalismo financeiro.

“A saúde movimenta uma parcela considerável da economia mundial. (…) Ora, essa grande indústria pode ser de medicamentos, de marca-passo, de prótese de quadril, de pinças cirúrgicas, de cateter urinário, de máquinas de tomografia. O que se quer é que se consuma o quanto mais”

Qual a relação entre a indústria farmacêutica e a atuação médica no Brasil?

No início de 2012 o Conselho Federal de Medicina iniciou uma maior regulação da premiação dos médicos a partir de suas prescrições em receituário; após um certo recuo, acabou deixando brechas. Na prática, penso que pouco mudou. Ainda são frequentes as viagens, inscrições e passagens para congressos, almoços, etc. A prescrição de medicamentos com princípios já conhecidos, mas sob novo nome, é um dos grandes engodos já comprovados. No entanto, hoje, o pagamento em dinheiro é mais escandaloso e frequente na área de insumos, como próteses e outros materiais de alto custo. Aí a coisa fica mais séria e rentável. É em dinheiro. São somas mais vultosas.

 

Em seu livro, o senhor faz uma crítica à omissão da publicação de resultados de certas pesquisas médicas que não favoreçam determinado medicamento ou droga analisada, além da interferência de empresas farmacêuticas em resultados de pesquisas que favorecem a utilização de determinadas drogas. Como e por que ocorre esse processo? Trata-se de uma prática mundial? Pode mencionar algum exemplo?

A crítica foi feita, com ampla divulgação, pela Dra. Marcia Angell, da Universidade de Harvard, que durante mais de uma década foi do corpo editorial da mais antiga e prestigiada revista de medicina clínica do mundo, The New England Journal of Medicine. Ela estava no centro do mundo da divulgação de pesquisas na área médica. No livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, lançado no Brasil em 2007, ela disseca toda a força e poder dessa indústria nos Estados Unidos. No meu texto eu faço apenas um pequeno resumo, onde percebemos que o processo se inicia na pesquisa, nas universidades; atravessa os ajustes na regulamentação da FDA (a agência de controle de medicamentos nos EUA); penetra nos políticos do Congresso; envolve os médicos e, por fim, a grande mídia, onde circulam livremente as propagandas de drogas e terapias. O exemplo mais famoso e recente foi o do mundialmente conhecido anti-inflamatório Vioxx®, que foi comercializado por algum tempo, mesmo após vários alertas de seu risco de aumentar as mortes por infarto. Até mesmo a FDA esteve sob suspeita de envolvimento no evento. Era um líder de mercado, com vendas mundiais na casa dos bilhões de dólares. Acabou sendo proibido e restaram muitos processos e indenizações.

 

As políticas de saúde do Estado brasileiro em relação ao SUS e aos planos de saúde são consideradas antagônicas?

Não me parecem. Ao contrário, todo o crescimento do segmento privado de seguros e planos de saúde se deu no espaço deixado pelo Estado, com a redução do investimento em sua rede de hospitais desde a década de 1980 e o subfinanciamento do SUS, a partir da década de 1990. Sob o comando dos governos Collor e Fernando Henrique, retirou-se a saúde como atividade essencial do Estado, que, segundo a cartilha neoliberal do ministro Bresser Pereira, deveria ser entregue à iniciativa privada. Caberia ao Estado apenas regular o mercado e fiscalizar a compra de serviços. Ainda não houve um retorno dessa política em outro sentido. Logo, o que o Estado vem fazendo com o SUS é quase que o colocando como um apanágio para quem não consegue pertencer ao mercado de saúde.

 

Concorda que há uma articulação do governo federal com o setor de planos de saúde por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, a qual fortalece os planos de saúde e enfraquece o SUS?

Não vejo dessa maneira. Podemos criticar a Agência por outras questões, talvez, pelo estímulo à concentração em grandes grupos, por privilégios em avaliações, salvamentos suspeitos de alguns planos. Mas a opção federal de não fortalecer o SUS me parece anterior e continuada, justamente com o subfinanciamento do sistema público. E isso é obra de todo o governo, das forças que comandam o Congresso, principalmente. A agência foi criada para regular o mercado de saúde privada, que existe e está crescendo. Podemos dizer que a política de saúde da última década estimulou esse modelo. E isso não é uma crítica de oposição, mas de insatisfação de todos que pensam em saúde pública. Ela pode ser vista no próprio livro organizado pelo insuspeito Emir Sader, lançado em 2013, com um balanço dos dez anos de governo do PT — Lula e Dilma, dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. O capítulo sobre a saúde, escrito pela professora Ana Maria Costa, é o mais crítico, de maior descontentamento.

 

Qual sua posição em relação ao Ato Médico?

A medicina não é dos médicos. É da cultura da sociedade. Penso que, antes de qualquer coisa ou detalhe, o que está se discutindo são demarcações de poder. É uma briga de corporações profissionais. Ninguém está realmente olhando o problema do ponto de vista do paciente. Parece-me mais uma disputa de sindicatos. O texto traz demarcações que me parecem hilárias, como os limites de derme e epiderme para a atuação deste ou daquele profissional, mas permitindo as injeções e cateterizações que o médico já “deixa” que outros façam. O Estado tem de pensar na saúde de todos e deve ser orientado pela necessidade da terapia e da capacitação técnica para oferecê-la. O que eu temo é que seja o deus-mercado quem demarque esses limites, pela questão do custo do profissional.

 

Como avalia o Programa Mais Médicos implementado no país?

Com estranhamento, desde o início. No começo de 2013, a maior “novidade” do governo federal na saúde foi a sinalização de um novo pacote de isenção fiscal para grandes planos de saúde de mercado, que assumiriam, com modelos mais baratos de assistência, os 40 ou 50 milhões de pessoas que estavam “entrando” no mercado de consumo, saindo da linha da pobreza. Então, parecia assim: a casa própria, eletrodomésticos de linha branca, telefones celulares e… plano de saúde. O ministro da saúde, à época já lançado como candidato ao governo do estado de São Paulo, reuniu-se com diretores do grupo Amil e Qualicorp e a notícia veio a público, mobilizando forte reação dos sanitaristas e entidades de saúde coletiva, como a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] e o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde]. O governo recuou publicamente. Por sua vez, as entidades de defesa e regulamentação da atividade médica no país permaneciam no combate diário pelo reajuste na tabela de remuneração e honorários dos planos de saúde e na luta pela Lei do Ato Médico. Onde estavam as prioridades dos outros três quartos da nação sem plano de saúde?

Bem, após as manifestações que dividiram o ano em dois, parece que mudamos um pouco de país e de prioridades. O governo anuncia um programa com características de uma solução de crise aguda. Em um país continental, com 200 milhões de habitantes e quase 400 mil médicos, que comprovadamente tem um dos menores gastos públicos per capita com saúde na América (gastamos menos que Argentina, Chile, México e Colômbia e muito menos que Cuba, Canadá e EUA), o governo contrata uma “força-tarefa” de médicos estrangeiros, por um tempo determinado. Sob um regime trabalhista diferenciado, com violação das normas da prática da profissão no país, e uma postura litigiosa e de afastamento em relação às entidades oficiais e legítimas da prática da medicina no país. Será uma grande vitrine em ano eleitoral, mas talvez se torne uma grande vidraça, como já começamos a perceber. Há inúmeros pontos frágeis, e o resultado a longo prazo me parece muito incerto.

Como vê a medida do Estado brasileiro de exigir que médicos formados a partir de 2015 sejam obrigados a atuar durante dois anos no SUS?

Acho coerente que isso aconteça com as faculdades e universidades públicas. O Estado tem o dever de planejar e distribuir os profissionais que são formados com o esforço conjunto da sociedade. Isso já deveria ser assim há mais tempo. O que vemos hoje são as titulações das melhores instituições públicas estampadas nos receituários dos consultórios privados, assim como a dupla, tripla vinculação e chefia de serviços públicos e privados simultaneamente.