A Democracia Reage

Liszt Vieira: “Democracia não está mais resistindo. Ela está reagindo”

 

Debate de alto nível entre amigos marca lançamento de “A Democracia Reage: O Brasil de 2020 a 2022” (Garamond, 2022) na Livraria da Travessa, no Rio, no último dia 14.

Por Tatiana Carlotti

 

Quem não conseguiu comparecer ao lançamento do livro A Democracia Reage: O Brasil de 2020 a 2022 (Garamond, 2022) do professor (PUC-Rio) e sociólogo Liszt Vieira, pioneiro da luta ambiental no Brasil, pode acompanhar no Canal do autor no YouTube o bate-papo de altíssimo nível político, e também afetivo, ocorrido no último dia 14, na Livraria da Travessa, no Rio.

Para debater a democracia e como ela vem reagindo às investidas do fascismo em curso, Liszt convidou três amigos de longa data: a atriz Lucélia Santos, candidata a deputada federal pelo PSB nas eleições deste ano; o economista Ladislau Dowbor (PUC-SP); e o deputado estadual Carlos Minc (PSB), ex-ministro do Meio Ambiente de Lula, entre 2008 e 2010.

Minc, aliás, tocou a todos ao recordar que 52 anos atrás, naquele exato dia, 14 de junho de 1970, Liszt,  Dowbor e ele saíam da prisão para o exílio na Argélia. Eles estavam entre os 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado dias antes no Rio, numa ação conjunta da Vanguarda Popular Revolucionária (VRP) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).

Na foto acima, no Galeão, momentos antes do embarque para Argélia. Abaixo, o grupo em segurança em Ben Aknoun, comuna em Argel, onde ficaram hospedados.
Treze anos depois, Liszt se elegeria deputado estadual pelo PT, tornando-se “o primeiro deputado verde do Brasil. Depois de muitos anos presos, exilados, um de nós ia para o Parlamento”, conta Minc. Em meados dos anos 1980, seria a vez da atriz Lucélia Santos se integrar à luta ambiental, participando da fundação do Partido Verde, o PV, ao lado de Liszt, Minc, Alfredo Sirkis, Herbert Daniel, Fernando Gabeira entre outros.

Em sua fala, Lucélia contou essa experiência e como abraçou a luta dos povos da floresta pela preservação da Amazônia após conhecer Chico Mendes, em 1988. “Eu cheguei em Xapuri (AC) no meio do grave conflito entre o latifúndio local e Chico Mendes – o mesmo que se vê agora –, em 1º. de maio de 1988 (…) No dia 22 de dezembro, Chico seria cruelmente assassinado na sua casa, por tiros de escopeta, por um pistoleiro de plantão”.

 

Essa é a História do Brasil,
Essa é a História da Amazônia,
Essa é a História dos povos da Floresta.

 

Ainda sob o impacto do desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista e ex-servidor da Funai, Bruno Pereira, cujas mortes seriam confirmadas somente na sexta (17), Lucélia foi categórica: “essa é a História do Brasil, essa é a história da Amazônia, essa é a história dos povos da floresta”.

Uma história que ela vem trazendo aos palcos com a peça Vozes da Floresta – Chico Mendes Vive, que conta o protagonismo das mulheres seringueiras na Amazônia, trazendo registros inéditos do líder seringueiro, guardados pela atriz em fitas k-7. Em cartaz até o começo de junho, a peça voltará em outubro, afinal, nesse meio tempo, ela irá se dedicar à campanha para deputada federal neste ano.

Uma candidatura, entre outras frentes, que se coloca à serviço dos direitos humanos e da reforma agrária na Amazônia. Em sua avaliação, a paz só virá com o reconhecimento dos territórios indígenas, por parte da União, como prega a Constituição de 88. “Enquanto não forem demarcadas as terras desses povos não haverá paz, nem justiça social e continuarão acontecendo assassinatos cruéis”, afirma.

 

“O que aquele povo passa, o Brasil não conhece, porque as grandes mídias conservadoras não explicam, não dão transparência e visibilidade às questões graves que acontecem ali”. Daí a importância da imprensa alternativa, “comprometida com a verdade dos fatos, com a justiça e com o jornalismo em si” na cobertura dos conflitos na Amazônia que “são imensos, inúmeros e não param. É todo dia”, complementa.

 

Ela também frisou que a defesa da Amazônia não é uma questão simplesmente local, mas de interesse nacional. “Quando falo da Floresta, estou falando de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Brasília, de Porto Alegre, de todos os centros urbanos. A Floresta em pé, viva, fecunda, extraordinária é a garantia da nossa vida, da nossa saúde, da nossa subsistência e descendência”.
“Conto com o novo governo – e espero que seja Lula e no primeiro turno – para enfrentar a questão da Amazônia de cabeça muito erguida, com vontade política efetiva de combater os garimpeiros, os invasores, os exploradores de madeira, os grileiros de terra, os vendedores, o narcotráfico, os traficantes”, conclui.

 

Sabemos o que deve ser feito, temos recursos, temos tecnologia

Na sequência, o economista Ladislau Dowbor, responsável pelo prefácio de A Democracia Reage, destacou a pertinência do livro de Liszt, uma “retrospectiva que constrói sentidos” e traz a “temperatura da desgraça que foi esse governo”.
Partindo da premissa de que “o nosso problema não é econômico, mas político”, Dowbor explicitou as contas dessa “zona generalizada” no Brasil e no mundo:

Se pegarmos o PIB mundial (90 trilhões de dólares) e dividirmos pela população mundial, teremos o equivalente a 26 mil por mês, por família de quatro pessoas. E se pegarmos o PIB do Brasil (8.7 trilhões de reais) e dividirmos pela população, teremos o equivalente a 13 mil reais por mês, por família de quatro pessoas. “A humanidade durante boa parte do tempo não tinha recursos para sair da miséria. Hoje, nós estamos nadando em recursos”.
Apesar disso, 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, e 125 milhões estão em insegurança alimentar. Entre as 33 milhões de pessoas, destaca o economista, 20% são crianças. Sim, existem 6 milhões de crianças passando fome agora no Brasil. O mesmo país que produziu, na sua última safra, 3,7 quilos de grão por dia e por pessoa. “Se dividir pela população, só de arroz, o que a gente produz, dava para entupir a barriga de todo mundo. Agora, fizeram a Lei Kandir e você pode exportar alimento e não pagar imposto”, lamentou.

 

Ele também comentou a fragilização dos sindicatos e dos movimentos sociais pelos sucessivos governos, salientando a impotência institucional que se reflete no fato de todas as nossas esperanças estarem concentradas na figura de uma só pessoa, o ex-presidente Lula. “Isso mostra a fragilidade da estruturação democrática e do sistema de organização social que vivemos”.
Em sua avaliação, “os dilemas que enfrentamos são de mudança civilizatória, de mudança de sistema”, afinal, “nós sabemos o que deve ser feito, temos os recursos, temos as tecnologias. Estamos nessa busca”.

 

Concorda?
Concordo.
Mas, não concorda assim tão fácil não. Diz por que você concorda.

 

O diálogo acima, trazido pelo deputado Carlos Minc (PSB) sobre o amigo e autor do livro, sintetiza a permanente problematização e a fuga das saídas simplificadoras, marcas da produção intelectual e da ação política de Liszt.

Lembrando o fato de Liszt “nunca ter deixado de ser de esquerda, nem ´vacilado´ em suas ideias sobre justiça social e socialismo, mantendo-se fiel a toda uma trajetória de vida”, Minc discutiu a importância da postura crítica do amigo, nem sempre a mais cômoda. Afinal, “para defender um governo de esquerda, você precisa ter argumento”, o que é impossível quando a repetição dá lugar à crítica.

 

Crítica presente na abordagem dos mais variados temas discorridos na obra, inclusive, questões delicadas da conjuntura nacional e internacional, ou a própria avaliação dos erros e acertos dos governos.

 

Ministro do Meio Ambiente (2008-2010) de Lula, Minc esteve à frente da redução pela metade do desmatamento no país; da criação do Fundo do Clima e Fundo da Amazônia; da adoção das metas de redução das emissões pelo Brasil, o primeiro entre os emergentes a fazê-lo. Apesar desses e tantos outros feitos, a pergunta se impõe: “será que fizemos todo o necessário? Se tivesse feito tudo certo, Bolsonaro não estava aí. O Liszt acha isso também”, pontua.

 

Quanto aos temas espinhosos, enfrentados e fundamentados no livro, Minc destacou a política das alianças neste ano eleitoral. E foi categórico: “quando há uma ameaça fascista, totalitária, concreta e iminente, a tática certa é isolar e derrotar o insano ou o tirano. A política de aliança ampla é a tática certa neste momento”. Em sua avaliação, “Lula está fazendo o certo quando busca o Centro. Você não pode vacilar”, sobretudo, diante de um governo que “está massacrando a universidade, a cultura e entregando a Amazônia para as narco-milicias de todo o mundo”.

Ele também destacou o quanto A Democracia Reage é “um livro gostoso de ler”, reunindo crônicas analíticas independentes, mas reunidas “pelo olhar de quem conta com décadas de militância política, de leitura, de atuação em legislar e em gerir”, aprofundando questões “sem preconceito, com clareza e integridade. Isso faz muita falta”, aponta.

 

Golpe?

Como era esperado, durante o debate com a plateia, veio à tona a questão de um possível golpe da extrema-direita durante as eleições. Segundo Liszt “uma coisa é a possibilidade de o golpe dar certo, outra coisa é ele tentar ou não. Acho que não há possibilidade de o golpe dar certo, mas ele vai tentar, com a PM ou os milicianos tumultuando as seções eleitorais. Não vai perder e dar parabéns ao vencedor. Não fará isso”.

“O mais importante é Lula vencer no primeiro turno. Como nele são votados também os governadores e os parlamentares, há muita gente interessada no primeiro turno. Agora, no segundo turno é Bolsonaro e Lula, portanto, a possibilidade de um tumulto é bem maior”.  Daí a necessidade de esforços reunidos para que Lula vença no 1º turno, afinal, “se isso não elimina, pelo menos reduz substancialmente a possibilidade de um golpe, não no sentido de tanques na rua, mas de tumulto, o que pode prejudicar a apuração eleitoral”, analisa.
Opinião corroborada por Minc, Dowbor e Lucélia em uma discussão acalorada com a plateia que merece ser acompanhada no Canal do YouTube do autor,clicando aqui.

 

Tatiana Carlotti é jornalista, mestre e doutora em Literatura Contemporânea.

 

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