O blog Infopetro, um dos mais importantes fórum de debates sobre a indústria do petróleo, publicou esta resenha sobre o recente livro do professor Luís Eduardo Duque Dutra (Garamond, 2019)
Capital Petróleo: A Saga da indústria entre guerras, crises e ciclos
Estabelecer a relação entre a mais que centenária indústria petrolífera e os altos e baixos da economia não é tarefa simples. Fazê-lo relembrando as contribuições das diferentes correntes do pensamento que, ao absorverem e refletirem a realidade em mutação, ampliam o escopo da análise sem cessar, foi a linha-mestra seguida em Capital Petróleo. A divisão e especialização do trabalho, a renda ricardiana, a luta pela apropriação do excedente, a instabilidade inerente dos oligopólios, o lucro supranormal do monopólio, a queda da taxa de lucro e a concentração, os custos de transação e sociais, a seleção adversa e o risco moral, a deficiência crônica da demanda, a inflação e a deflação… Noções de macro e microeconomia são destiladas ao longo do texto. O que permite aprofundar gradualmente a análise, ganhar uma compreensão mais abrangente, consistente e coerente, bem de acordo com a crescente complexidade do sistema de produção e a velocidade das transformações, acelerada depois que o petróleo substituiu o carvão.
A predisposição isenta de preconceito quanto à ideologia (que não cabe aqui discutir) não somente permite associar as diferentes perspectivas teóricas e positivas, mas também e principalmente, facilita o diálogo com a sociologia, a administração, o direito, a ciência política e as engenharias. A relação entre economia e petróleo além de ser multidimensional, tem extensão planetária, ultrapassa todas as fronteiras e alcança os confins da terra. É evidente que a reprodução de estruturas, padrões e comportamentos se sujeita à geografia, cultura e política local, mas, impressiona como, diante da diversidade (no tempo e espaço), identifica-se uma trajetória, em primeiro lugar, profundamente cíclica e, sem seguida, articulada com a reconstrução das relações entre centro e periferia.
O relato acompanha a expansão da atividade, de bacia em bacia sedimentar, detalha a sequência de províncias desenvolvidas desde o início e, assim, a partir do Meio-Oeste e das praias californianas chega-se à costa dourada mexicana, ao lago Maracaibo venezuelano, aos campos gigantes do Oriente-Médio, à epopeia off-shore no Golfo do México e Mar do Norte. Não se trata apenas de alargar as fronteiras, mas, vencer os sucessivos limites impostos pela geologia, geografia e engenharia e, assim, realizar o negócio e obter lucro. De acordo com o autor, não existe melhor exemplo de capital produtivo que tenha continuamente crescido contra ventos e marés e se posicionado entre os maiores do mundo. É interessante a atenção concedida à periferia, aonde a análise flagra as desequilibradas relações de poder e até onde o poder econômico vai para garantir o ganho. O termo guerra, logo no início do subtítulo da obra, deve ter esse sentido. Argentina, Bolívia, Paraguai, Venezuela, Colômbia, países do Norte da África, Nigéria e Angola estão entre aqueles estudados. A natureza extrativa ou, como o autor qualifica – predatória – da empreitada assume, muitas vezes, uma violência ímpar.
As três últimas partes do livro se concentram em eventos mais recentes e, em particular, na estratégia das empresas para preservarem o (até então) incontestável poder de mercado (consolidado muito antes da II Guerra Mundial). Descrito desde seus primeiros passos, o surgimento das estatais, com a nacionalização das reservas na periferia, mudou as regras do jogo e os fundamentos do mercado. A emergência das estatais chinesas, russas e árabes ilustra a profunda mudança depois da criação da OPEP. A crise financeira de 2008, sua persistência, a importância dos fundos soberanos (no enfrentamento da instabilidade cambial) e a fabulosa riqueza de alguns países são abordadas e configuram um cenário na política internacional bem diferente daquele esperado com o fim da Guerra Fria.
A sétima e última parte se inicia pela revisão da abertura dos mercados na América do Sul. A completa reestruturação da indústria local, a criação de órgãos de regulação e a presença de estatais ainda fortes são marcos que reposicionam os países da região no novo cenário petrolífero e no qual a Venezuela perdeu o protagonismo. Os três capítulos finais se atém à súbita queda de preços a partir de meados de 2014, à volatilidade dos preços, à instabilidade política e, a despeito de tudo isso, à recuperação das empresas no biênio 2017 e 2018. Demonstração clara de que ainda conservam poder suficiente para ampliar seu capital pelos próximos dez a vinte anos.
Contudo, não faltam ameaças e elas não se resumem à ganância do coletor de impostos, aos royalties cobrados pelos países hospedeiros ou a crônica instabilidade dos oligopólios e ditaduras. Elas estão relacionadas tanto à mudança de hábitos e costumes ao longo de gerações, quanto à mudança da estrutura econômica em resposta aos avanços da sociedade da informação e ao valor do intangível, do imaterial. As petroleiras não parecem preparadas para o desafio, em particular, no que diz respeito à questão climática. Elas terão de se reinventar (mais uma vez) para ficarem entre as maiores empresas do mundo.
Para o leitor após 430 páginas, talvez, o final seja frustrante, uma vez que o autor não se atreve a fazer projeções, ou prever o futuro. De forma quase enigmática, ele se refere ao mito de Prometeus: que alguma solução surja antes do desastre. Certo é que ela não contará com as petroleiras e questionará o sistema de produção atual, mas, o que fazer e como? Isso não foi nem mencionado. A esta crítica acrescento a observação de poucos (de fato, muito poucos) erros de diagramação e mesmo raros erros de português que passaram pela última revisão. Embora possam ser contados nos dedos, eles chamam a atenção em um português fluído e sempre claro. Um erro, porém, na nota de rodapé da página 217, é flagrante para qualquer iniciado na matéria.
Sem dúvida, sublinhada algumas vezes, a conotação marxista é um risco assumido, ela fica evidente na bibliografia, será sempre sujeita à crítica e afasta o leitor mais radical de imediato. Além disso, frente à ortodoxia e seus modelos, a quantidade de gráficos, tabelas e diagramas teriam muito melhor serventia ao serem analisados por outra perspectiva; mais quantitativa e normativa; menos qualitativa e histórica. As crises seriam conjunturais, resultado de fatores exógenos – como a intervenção do estado – e a concorrência se mostra sempre melhor que qualquer alternativa.
Definitivamente, não foi esta a escolha de Duque Dutra e, assim, em língua Portuguesa, seu livro ocupa um espaço antes vazio na literatura econômica.
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